
Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã
Resistência Através das Lentes: histórias de luta e memória do cinema dirigido por mulheres contra a ditadura civil-militar brasileira
Desde sua criação, no século XIX, o cinema tem se consolidado como um forte aliado contra regimes autoritários em todo o mundo. No Brasil, isso não seria diferente. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), o período que representou a ruptura democrática mais longa e profunda da história republicana do país, a cultura esteve sob constante ameaça de censura por críticas que iam contra o pensamento conservador do governo e sociedade vigentes. Na época, auge do cinema novo, centenas de produções cinematográficas consideradas imorais e inadequadas tornaram-se alvos de decretos repressivos impostos através de leis e atos institucionais. Se para os diretores desses filmes o risco era ter suas obras silenciadas pelo sistema, para as diretoras a luta se estendia: além do enfrentamento político, havia o combate à uma sociedade machista e patriarcal.
Apesar do golpe de 64 ser o início do período mais repressivo do país, é preciso voltar no tempo e relembrar o que antecedeu a queda de João Goulart. Desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Brasil apresentou uma trajetória política marcada por instabilidades e rupturas institucionais que ajudaram a pavimentar o caminho para o autoritarismo. A instauração da chamada República Velha (1889-1930) logo deu lugar para a República Oligárquica, onde a alternância do poder era rigidamente controlada pela elite rural dos estados de São Paulo e Minas Gerais - conhecida como política do café com leite. Na teoria, o sistema era democrático, porém, na prática, era dominado pela corrupção através da compra de votos e violência por parte dos coronéis (Coronelismo). O primeiro grande colapso veio com a Revolução de 1930, um golpe de Estado que depôs o até então presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes. O movimento articulado pelas elites de Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul deu início a chamada Era Vargas (1930-1945).
Após um período de governo provisório e uma breve fase constitucional, Getúlio Vargas rompeu definitivamente com a democracia ao instaurar o Estado Novo, em 1937. Essa ditadura se baseou na centralização do poder, censura, repressão política e forte propaganda estatal. Durante estes 8 anos, Vargas anulou a Constituição de 1934, fechou o Congresso Nacional, nomeou interventores para os estados, criou o Departamento de Imprensa e Propaganda(DIP) para controlar a informação e promover o governo e perseguiu opositores, além de extinguir todos os partidos políticos. A fase mostrou que as Forças Armadas e as elites estavam dispostas a sacrificar a ordem legal em nome da "ordem" e "progresso" econômico, utilizando pretextos como o Plano Cohen para justificar a autocracia. Mesmo após o seu fim, em 1945, e o começo da quarta república, em 1946, a instabilidade persistiu. Logo, a polarização política ficou dividida entre três principais partidos: PTB (pró-Vargas, à esquerda), PSD (Centro) e a UDN (anti-Vargas, à direita). Crises militares e tentativas de golpe foram constantes, como a que levou ao suicídio de Getúlio, em 1954, e o "contragolpe preventivo" de 1955, necessário para garantir a posse de Juscelino Kubitschek. Essa longa história de intervenções e irregularidades recorrentes preparou o terreno para que, em 1964, a crise fosse discutida não pela via política, mas pela ruptura militar definitiva contra o reformismo de João Goulart.

Os primeiros dias do golpe
Deposição de Jango
Na noite de 31 de março de 1964, tropas militares marcharam de Minas Gerais e São Paulo em direção ao Rio de Janeiro. João Goulart deixou a capital, Brasília, rumo ao Rio Grande do Sul, e depois ao exílio no Uruguai. No dia 2 de abril, sem resistência, a Presidência do país foi oficialmente declarada vaga pelo Congresso, sob pressão militar. O ato marcou o fim da democracia e o início de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina.
A UNE, principal entidade representativa dos estudantes, foi um dos primeiros alvos do regime. Reconhecida por seu comportamento combativo e de esquerda, a sua sede foi incendiada e depredada por apoiadores do golpe e forças militares, no dia 1 de abril. Meses depois, através da Lei Suplicy de Lacerda (nº 4.464/1964), as organizações estudantis foram proibidas de realizar atividades político-partidárias de qualquer gênero.
União Nacional dos Estudantes (UNE)
Jornal Última Hora
O Jornal Última Hora, fundado por Samuel Wainer, apresentava forte linha editorial nacionalista e foi um dos poucos veículos a criticar o golpe. O veículo diário teve sua sede invadida, sua redação depredada e edições censuradas logo no início do no governo. Sua perseguição exemplificou como a imprensa considerada "subversiva" foi rapidamente silenciada para consolidar o controle do regime.
Ato Institucional N°1
Após a saída de João Goulart, uma junta militar ficou no poder até a posse de Castelo Branco, no dia 15 de abril. Sua eleição foi realizada de maneira indireta, através do ato institucional n° 1, promulgado em 9 de abril. O ato foi o primeiro de uma série de decretos que inauguraram o período ditatorial no país. Ele suspendeu a Constituição de 1946, facilitou a perseguição de pessoas contrárias ao regime e deu o poder à cúpula militar de cassar mandatos e direitos políticos.
Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Cinema Novo
Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça
Foto: MUBI

Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã
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Lei da Imprensa (1967)
Ato Institucional n°5 (1968)
Decreto Leila Diniz (1970)

O Cinema Marginal
Baixo orçamento
Os filmes eram produzidos com poucos recursos, muitas vezes de maneira independente e improvisada. Essa limitação transformava-se em força criativa, dando autenticidade e urgência às histórias. As filmagens eram feitas com elencos reduzidos, iluminação natural e locações reais (ruas, cortiços, periferias, etc).
Essa estética mais simples - apelidada de udigrudi - se tornou uma forma de rejeitar o modelo de produção burguês e criar uma cinema mais livre e autoral.
Crítica ao sistema
As obras denunciavam a repressão política, a hipocresia da classe média e o controle da indústria cultural durante a ditadura. Era caracterizado como um cinema de contestação, que usava a ironia e o absurdo para expor as contradições do poder e da sociedade. Filmes como O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) ou Matou a Família e Foi ao Cinema (Júlio Bressane, 1969) ironizavam o heroísmo, o moralismo e a própria linguagem do cinema.
Transgressão estética
Inspirados pelo cinema de vanguarda, pelo surrealismo e pelo cinema underground americano, os marginais exploravam montagens fragmentadas, narrativas não lineares, som caótico e improvisação. A ideia era chocar, confundir e provocar reflexão, usando a linguagem cinematográfica como instrumento de rebeldia. A transgressão não estava apenas no conteúdo, mas também na forma de filmar, editar e representar o Brasil em toda sua contradição.
Helena Ignez
Uma das figuras mais marcantes da época foi a atriz e diretora Helena Ignez. Protagonista de clássicos como O Bandido da Luz Vermelha (1968), A Mulher de Todos (1969) e Copacabana Mon Amour (1970), tornou-se um símbolo da liberdade feminina em confronto com a moral patriarcal. Suas personagens mostraram uma nova face feminina nas telas - livre, provocadora e contraditória, longe do ideal da “mulher recatada” imposto pelo regime.
Foto: Servicine - Serviços Gerais de Cinema
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Pornochanchada
Humor e erotismo como forma de combate
Foto: Regina Filmes
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Filmes brasileiros com mais de 500 mil espectadores (1970 - 2024)
Fonte: Agência Nacional do Cinema (Ancine)
Em 54 anos, apenas 5% dos filmes brasileiros de maior bilheteria no país foram dirigidos ou co-dirigidos por mulheres
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